Inserido em 11/04/2019
O Pramnio é um vinho citado na Ilíada e na Odisseia, e que até hoje é uma incógnita para os cientistas
Ulisses precisou usar toda a sua astúcia para conseguir libertar seus marinheiros do poder da feiticeira Circe – que os havia transformado em porcos. Segundo conta Homero no Canto X da Odisseia, com ajuda dos deuses, o rei de Ítaca foi capaz de resistir à poção criada pela bruxa – cuja base levava queijo, farinha de cevada e mel misturados ao vinho Pramnio – e, assim, obrigá-la a os transformar em homens novamente.
Depois disso, diante de tantas libações e prazeres, Ulisses decidiu ficar na ilha de Eana, lar de Circe, esquecendo-se de sua pátria. Lá permaneceu por um ano, banqueteando-se e bebendo vinho abundantemente. Só seguiu viagem quando seus companheiros apelaram para o seu bom senso.
Circe oferece bebida a Ulisses. Poção que o transformaria em porco levava queijo, farinha de cevada e mel misturados ao vinho Pramnio
Ao ler esse trecho da epopeia, tem-se a impressão de que o vinho Pramnio devia ser mesmo maravilhoso. Mas, antes disso, Homero já havia citado outras qualidades dessa bebida na Ilíada. Ou seja, antes mesmo de empreenderem de suas jornadas para a casa, os heróis gregos – entre eles Ulisses – puderam apreciar o vinho durante a Guerra de Troia.
Em uma passagem no Canto XI, quando os gregos estão sendo atacados pelos troianos, Macaón é ferido e trazido para a tenda de Nestor – um dos comandantes das tropas gregas. Nela, a escrava Hecamede prepara uma bebida revigorante feita com vinho Pramnio, queijo de cabra ralado (com um ralador de bronze, segundo o texto) e uma mistura de farinha branca.
Essas primeiras menções nos escritos homéricos, que datam do século VIII a.C., dizem pouco sobre o Pramnio, mas certamente dão a entender que era um vinho famoso. Isso se confirma com relatos e aparições em outros textos de autores gregos mais tardios, assim como de historiadores, como Plínio, o Velho, já nove séculos depois das epopeias de Homero. Em seu “História Natural”, Plínio escreve que, em sua época, o Pramnio ainda é uma bebida célebre.
Forte mesmo!
Sabemos que diversos vinhos da antiguidade eram doces, muitos feitos com uvas passas. No entanto, diante dos relatos, é difícil decifrar qual seria o estilo do Pramnio. Que deveria ser um vinho aromático e forte, isso parece ser unânime entre os estudiosos, pois a bebida é citada como antídoto contra alguns venenos e até mesmo como ingrediente de medicamentos que curam feridas.
O dramaturgo Aristófanes chega a dizer que os atenienses não gostam desse vinho “aromático e maduro”, “que faz com que as sobrancelhas e barriga se encolham”. Seu contemporâneo, Frínico (também dramaturgo), confirma dizendo que ele é o contraposto dos vinhos glyxis e hypóchytos – consagradas bebidas doces da época. Hipócrates, o médico, vai além e recomenda o uso do líquido no tratamento de úlceras – especialmente as genitais. Haja tanino!
No entanto, para outros autores, o vinho era forte sim, mas doce. O farmacologista Dioscórides cita o Pramnio como similar ao prótropos, feito com uvas sobremaduras. Já o poeta Nicandro relaciona o nome pramnía com a uva psithía, que, segundo pesquisadores, é um tipo de Moscatel. Mais recentemente, cientistas acreditam que a bebida provavelmente tinha o estilo do Vinho do Porto, ou então do Tokaj – pois alguns afirmam que era obtida pelo mosto que fluía das uvas antes mesmo de serem prensadas. Porém, essas hipóteses parecem menos defensáveis.
Uma das melhores descrições é de um historiador grego chamado Epárquides que, no século IV a.C., escreveu que o vinho de sua terra natal (a ilha de Icária), “não é doce nem espesso, porém seco e áspero, e dotado de uma força extraordinária”.
Terroir ou variedade?
Outra grande questão envolvendo o Pramnio é a sua origem. Por ter sido citado na Ilíada e na Odisseia, muitos lugares quiseram se aproveitar da fama e reivindicam ser o nascedouro do vinho original. Um dos que reclamam a primazia é a ilha de Icária (que deve seu nome à lenda de Ícaro), na Grécia. Sabe-se que uma região na ilha chamada Oenoe (hoje Kampos) produzia o Pramnio, um vinho de excelente qualidade, e, pelo qual pagava tributo aos atenienses, cerca de 8 mil dracmas – o que na época a colocava entre os principais estados contribuintes de Atenas.
Muitos acreditam que o vinho tenha surgido nesse local da ilha, conhecido como Pramnia Petra, e depois se espalhado para outros lugares. Contudo, alguns lexicólogos atestam que o nome não estaria ligado a um lugar, mas se refere a qualquer vinho “de guarda”, vinculado ao termo paramónios. Outros acreditam ainda que o nome deriva de praynon (algo que acalma).
Não se sabe se o nome Pramnio teria tido origem em um local ou devido a uma variedade de uva
E, como apontado antes, há quem diga que pramnía é uma variedade de videira ancestral. Se essa vertente estiver correta, cientistas acreditam que essa uva era cultivada na província turca de Esmirna, na ilha grega de Lesbos e outras (além de Icária, obviamente), já que textos gregos antigos insinuam essa possibilidade.
Por tudo isso, até hoje o Pramnio é um mistério, um mito que nasceu junto com os primeiros escritos sobre a mitologia grega.