Inserido em 18/03/2019
Tanto o vinho quanto as rosas são cercadas de simbologia. Mesmo nos vinhedos, lá está a "rainha das flores". O que ela significa?
"É a vaidade, Fábio, nesta vida,
Rosa, que da manhã lisonjeada,
Púrpuras mil, com ambição dourada,
Airosa rompe, arrasta presumida.É planta, que de abril favorecida,
Por mares de soberba desatada,
Florida galeota empavesada,
Sulca ufana, navega destemida.É nau enfim, que em breve ligeireza,
Com presunção de Fenix generosa,
Galhardias apresta, alentos preza:Mas ser planta, ser rosa, nau vistosa
De que importa, se aguarda sem defesa
Penha a nau, ferro a planta, tarde a rosa?"
Gregório de Mattos
Nos milênios de história da humanidade, vinho e rosas criaram simbologias próprias, ganhando significados dos mais diversos, servindo ao homem para que ele criasse expressões sem precisar das palavras, mas somente destes símbolos. Conhecidas desde a antiguidade clássica, rosas e videiras convivem no imaginário, mas também nas belas paisagens de terroirs pelo mundo todo. Quem já não viu, diante das intermináveis fileiras de vinhas, uma roseira?
O que a rosa estaria fazendo lá? São muitas as histórias e versões. Seria para perfumar as uvas ou apenas para embelezar as plantações? A verdade - que, como em toda obra que usa esta flor como símbolo, deve permanecer secreta - certamente não é das mais pomposas e provavelmente não faz jus ao status de beleza e imponência preconcebido pela mitologia em torno das rosas.
Vinho e rosa sempre estiveram presentes nas histórias da mitologia. Aliás, reza a lenda que Dionísio, deus grego do vinho, estava presente na criação da rosa, pela deusa Clóris (Flora). Do corpo de uma ninfa, Clóris criou a flor. Afrodite teria lhe dado a beleza. Baco (ou Dionísio, na versão grega), o néctar, para formar o perfume inebriante. As três Graças, encanto, esplendor e alegria. Apolo, deus do sol, a vida. Diz-se ainda que as abelhas se aproximaram e Cupido tentou espantá-las atirando suas flechas, que viraram espinhos.
Aroma de rosas
As descrições das características aromáticas de um vinho também remetem a tons florais e aí também estão presentes as rosas. E, além disso, uma das mais famosas regiões vinícolas do mundo, Champagne, na França, também é o local de culto de uma das mais célebres flores do mundo, a renomada rosa de Provins. De importantes propriedades medicinais, ela foi trazida para a cidade de Provins por Thibaud IV, conde de Champagne, após ele voltar das Cruzadas, em 1240.
Assim, enquanto o vinho é a bebida dos deuses, a rosa é o símbolo maior de perfeição e beleza, da mulher - na literatura, o botão de rosa remete ao órgão sexual feminino, por exemplo. A relação vinho e mulher, contudo, nem sempre foi das mais amigáveis nas narrativas gregas, como n'As Bacantes, tragédia de Eurípedes. Esse famoso drama relata a vingança do deus Baco (daí o nome Bacantes) contra sua família humana, levanto as mulheres de Tebas a um frenesi com final trágico.
Símbolos religiosos
No entanto, tanto o vinho quanto a rosa, na forma de mulher, também teriam papéis fundamentais na religião, especialmente no cristianismo. O precioso liquido báquico não só não foi descartado nos rituais cristãos, como têm função primordial, representando o sangue de Jesus na transubstanciação da eucaristia. Aliás, aí se dá uma semelhança entre as tradições pagãs e cristãs, pois Dionísio também era filho de uma mortal com uma divindade.
Nesse sentido, a rosa (que chegou a ser banida por lembrar crenças pagãs) também é fundamental no cristianismo, pois, a cruz - que representa Jesus, o lado masculino -, e a rosa simboliza Maria, sua mãe. Símbolo da pureza, a flor reflete a imaculada concepção da Virgem. Toda a veneração à mãe de Jesus está vinculada a ela, basta lembrar do rosário (coroa de rosas) - tido como a mais importante das devoções, quando se rezam 150 Ave Marias e se veneram os mistérios da vida de Cristo e Nossa Senhora - e das menções à Rosa Mística, por exemplo. A rosa, ou melhor, a rosácea, ainda foi amplamente usada nas catedrais góticas. Os vitrais circulares, em forma de pétalas, servem para contar histórias bíblicas.
O mês de maio, auge da primavera no hemisfério norte, é dedicado a Maria - também às mães e às noivas. Segundo a mitologia, o quinto mês do ano era dedicado a Maia, deusa dos campos. Ela era quem "despertava" a natureza, assim, as flores.
Roseiras costumam ser plantadas nas pontas dos parreirais. Seria para perfumar o vinho? Seria para enfeitar? Qual a real função das rosas?
Segredos desvendados
Já que citou-se os mistérios da vida de Cristo, é bom lembrar que sempre esteve vinculado à simbologia da rosa a conotação do segredo. Todo o encantamento da "rainha das flores", como é chamada, costuma encerrar um mistério. Especialmente na Idade Média, uma rosa era colocada em locais de reuniões secretas. Elas representavam o silêncio em torno do que era discutido.
O genial Orson Welles criou uma obra-prima do cinema em torno de um mistério que envolvia um botão de rosa. No clássico "Cidadão Kane", o personagem principal suspira a palavra "rosebud" em seu leito de morte e isso leva a uma investigação sobre sua vida. Porém, a obra termina sem que o segredo seja desvendado.
O vinho, por sua vez, apesar de também fazer parte de cerimônias fechadas e outros tantos rituais secretos, não costuma estar ligado à manutenção de segredos, mas à língua e pensamentos soltos. Mas a rosa, em seus milhares de significados, também poderia representar uma revelação, não banal obviamente, porém, como uma verdade antes escondida. Quem leu "O Código Da Vinci", de Dawn Brown, por exemplo, certamente entendeu como o símbolo da rosa pode ser levado ao extremo.
Sentidos e significados
As flores, em especial as rosas, carregam milhares de significados, acumulados durante anos e anos. Se um dia o semiótico (escritor, filósofo, crítico literário etc etc etc) italiano Umberto Eco escreveu que os namorados, na era da pós-modernidade não poderiam dizer "Eu te amo", pois a expressão, de tão banalizada, estaria vazia de sentido, quem sabe, eles possam emprestar das rosas um pouco de significado. Para Eco, seria preciso se valer da construção de uma cadeia que confira legitimidade ao sentimento como: "Como escreve Carlos Drummond de Andrade, eu te amo". Drummont, aliás, que tem na "Rosa do Povo", um dos seus mais famosos livros. Sua "rosa" representa a expressão das pessoas de seu tempo.
As rosas, contudo, guardam linguagens próprias e sempre serviram aos namorados. Um buquê de rosas vermelhas, símbolos universais da paixão, do amor, é poderoso na hora da conquista. Os preparados com 11 botões da flor, faltando uma para completar a dúzia, guardam mais um significado: a décima segunda rosa representaria a figura da pessoa amada. Nos casamentos, há rosas brancas, símbolos da união (amor eterno) e pureza. As amarelas, remetem à amizade e riqueza.
Espinhos
A oposição entre a perfeição formal da rosa e os espinhos também serve de mote para a literatura. Uma rosa sem espinhos significaria o amor incondicional, quase irascível, à primeira vista. Há até uma lenda em que São Francisco se jogou sobre as roseiras de Assis para se penitenciar por uma tentação e elas nunca mais produziram espinhos. Uma rosa sem espinhos seria o símbolo máximo da perfeição, contudo, contraditoriamente, ela também não seria uma rosa de verdade, como pergunta o poeta português Almeida Garrett:
"Para todos tens carinhos,
A ninguém mostras rigor!
Que rosa és tu sem espinhos?
Ai, que não te entendo, flor!"
As rosas ainda foram fazem parte de inúmeras lendas, e lendas próprias - como a da rosa de Alexandria, que seria branca de dia e vermelha de noite - assim como de símbolos heráldicos (brasões). Quem não estudou no colégio a Guerra das Rosas, a disputa entre a casa de Lancaster (cujo brasão tinha uma rosa vermelha) e a casa de York (rosa branca) pelo trono inglês?
Mas a "rainha das flores" também foi lembrada em momentos não tão sublimes pelos poetas e escritores. Alguns preferiram comparar antagonicamente sua beleza com a bomba atômica, por exemplo. Que o diga Vinicius de Moraes no celebre poema "Rosa de Hiroshima".
Por fim, revelamos o segredo da rosa e a relação antagônica da roseira nos vinhedos. Ela não está lá pela beleza ou pelo perfume. "Canário na mina", é a rosa diante das vinhas. Assim como a ave bela e cantante desce à mina de carvão junto com os mineiros para, caso ela morra, alertá-los de que o ambiente está hostil; a rosa também dá sua vida para alertar a videira (ou melhor, o viticultor) de que o perigo se aproxima. Em uma tarefa nobre, a rosa morre pelo vinho e, parodiando Eco em seu célebre livro "O Nome da Rosa", restar-lhe-á apenas o nome: "stat rosa pristina nomine, nomina nuda tenemus" (algo como "a rosa antiga permanece no nome, nada temos além dos nomes").
"A mim! foi a mim que o ouviste?
Eu! - chamá-la minha rosa!...
De certo que é bem formosa,
Entre criança e mulher!
Se a vejo tão jovem inda,
Tão simples, tão meiga e linda,
Da vida no rosicler;Podia chamá-la - rosa,
De musgo ou de Alexandria,
Rosa de amor, de poesia,
Mais lhe não dava que o seu;
Porque se essa flor mimosa
Já chegaste ao teu retrato,
Havias ver como a rosa
De repente esmoreceu!"
Gonçalves Dias