Inserido em 23/05/2019
O vinho Ne Oublie sobreviveu ao tempo, atravessou gerações e, com mais de 130 anos, merece ser taxado como perfeito
O lema da empresa Graham’s, onde Andrew James Symington trabalhou, era “Ne Oublie”, algo como “Não Esqueça”
É difícil mensurar o legado de alguém. Quando o escocês Andrew James Symington foi trabalhar em Portugal em uma empresa cujo principal ramo de atividade até então era têxtil, ele – ainda um adolescente de 18 anos – certamente não poderia imaginar as reviravoltas que sua vida daria e o que ele seria capaz de construir nos anos seguintes.
O ano era 1882 e “AJ”, como era conhecido, saiu do Reino Unido para desembarcar na cidade do Porto e assumir um emprego oferecido pela Graham’s, fundada pelos irmãos William e John Graham – uma das maiores referências do comércio de têxteis no mundo na época. Por acaso, em 1820, a empresa escocesa também havia passado a atuar no negócio do Vinho do Porto, depois de receber 27 tonéis de vinho como pagamento de uma dívida.
Curiosamente, o lema do clã dos Graham’s era um termo em francês, Ne Oublie, cuja tradução é algo como “Não Esqueça”. O mote provavelmente foi herdado e adaptado de clãs ainda mais antigos – das mesmas terras altas da Escócia de onde vieram os Graham’s – que usavam o termo latim Ne Obliviscaris. O real sentido por trás dessas palavras, contudo, é bastante incerto, com historiadores apontando que, talvez, elas podem ter tido origem em ensinamentos bíblicos. Certo era que os irmãos Graham mantiveram a tradição familiar e as usaram como lema da empresa.
Em uma visita à região do Douro, AJ encantou-se com o lugar e o vinho lá produzido, e passou a se dedicar a essa área da empresa. Com o tempo, conquistou a reputação de ser um grande provador. Mas a guinada definitiva veio somente em 1891, quando ele se casou com Beatriz Leitão de Carvalhosa Atkinson, pertencente a uma família com diversas relações no mercado de Vinho do Porto. Foi então com ajuda do sogro que AJ seguiu no negócio que acabaria por transformar em um “império”.
Para não esquecer
Em 1920, quando já era sócio da Warre’s & Co. – a mais antiga companhia britânica estabelecida em Portugal – e também da Dow’s, Andrew decidiu comprar (de um produtor do vale do rio Torto) quatro pipas de um Porto de 1882, o ano da sua chegada a Portugal. As pipas permaneceram no Douro por quase 40 anos quando, então, foram transportadas para os armazéns da Dow’s, em Vila Nova de Gaia. O passar do tempo fez com que a chamada “cota dos anjos” (1% líquido perdido por evaporação todos os anos) e os atestos (preenchimento periódico dos barris, para compensar o volume perdido por evaporação ou mudança de temperatura) levassem as quatro barricas a serem reduzidas a apenas três.
Andrew faleceu em 1939, deixando essas três barricas especiais como uma de suas heranças, um legado que foi cuidadosamente mantido por seus descendentes. Em 2014, os Symington decidiram engarrafar o vinho de uma das barricas, reservando as outras duas para as próximas gerações. Assim, foram obtidas 656 garrafas e outras 100 pequenas amostras para degustação. Segundo a família, os outros dois barris remanescentes serão deixados para a próxima geração que irá decidir o que fará com eles no futuro – não antes de 2025.
Esse Porto especial foi batizado de “Ne Oublie”, lema dos Graham’s (cuja empresa de Vinho do Porto acabou sendo adquirida pelos Symington em 1970), e simboliza o respeito e o comprometimento dos herdeiros de AJ com as origens de sua família, com Portugal e com região do Douro e, obviamente, com legado de seu ancestral, que começou toda essa história. Hoje, graças ao pioneirismo de Andrew, a família Symington – do grupo que produz os Portos Graham’s, Cockburn’s, Dow’s e Warre’s – é proprietária de mais de mil hectares de vinhedos na região do Douro.
Em 1920, “AJ” comprou pipas de um Porto de 1882, que foram guardadas até hoje
A ideia é que o “Ne Oublie” represente o trabalho dos mais finos artesãos dos três países que deram origem à família Symington: Escócia, Inglaterra e Portugal. Assim, o Vinho do Porto do final do século XIX, foi engarrafado em um decanter numerado, feito à mão, em cristal soprado por mestres vidreiros da fábrica portuguesa Atlantis, com três anéis de prata moldados e gravados pelos ourives escoceses da Hayward & Stott, e guardado numa caixa de couro especialmente desenhada e produzida à mão pela famosa marca britânica Smythson, da Bond Street, em Londres.
Noite inesquecível
Quando recebemos o convite para degustar, no final de 2014, alguns vinhos do portfólio da família Symington na presença de Dominic Symington, um dos herdeiros da família, não poderia imaginar o que aquela noite agradável iria reservar. Assim como AJ, embarcamos para uma nova aventura sem saber aonde ela nos levaria.
No convite para a degustação estava uma série de vinhos excepcionais, entre eles o Chryseia 2011 e Graham’s Vintage Port 1997, dois dos melhores vinhos já produzidos pela família. Só isso já seria suficiente para agradar. Porém, ao término da prova, Dominic alegremente revelou que iríamos degustar mais um vinho. Sem alarde, sem aviso, de seu jeito, com a humildade e simplicidade proporcionais ao seu conhecimento, começou a abrir uma maleta que continha uma série de garrafinhas. Ao mesmo tempo começou a contar entusiasmado e muito emocionado o quão importante era para ele aquele momento, dizendo também que o vinho que iríamos provar não necessitava de muitas explicações, que ele falaria por si só.
As degustações comandadas por Dominic são sempre muito instrutivas e descontraídas, mas, nesse caso, o silêncio e uma aura de contemplação e fascinação tomou conta. Não é todos dias que temos a chance de degustar um vinho do século XIX. Sabíamos que aquele era um momento importante e único e o melhor jeito de desfrutá-lo era degustar o vinho com a atenção de todos os nossos sentidos, sem muitas palavras.
Geralmente, esses vinhos são únicos, sempre muito bons e cheios de finesse. Uma família como a Symington não se daria ao trabalho de lançar um vinho de € 5.500, se ele não fosse assim, extraordinário. No entanto, o “Ne Oublie” se mostrou sublime, indescritível e, por incrível que pareça, ainda melhor que sua própria história. Um 100 pontos incontestável.
O “Ne Oublie” representa todas as tradições da família Symington, unindo o melhor da Escócia, Inglaterra e Portugal em uma só garrafa
AD 100 pontos
NE OUBLIE 1882
Graham’s, Douro, Portugal. Este tinto fortificado doce da colheita de 1882 faz parte de um rol pequeno de vinhos que nos deixam sem palavras... Merecia, pelo menos, 110 pontos. Qualquer tentativa de descrevê-lo não fará jus à experiência de prová-lo, mas vamos tentar. Percebe-se aqui todo o cuidado da família em conservar este vinho durante todos esses anos nesse estado magistral. Une as qualidades de intensidade, complexidade, persistência, profundidade, potência, textura e acidez em grau máximo, num contexto de perfeito equilíbrio e finesse ímpar. Super vivo para 133 anos, surpreendentemente com bastante fruta ainda. Iodo, ferrugem, marrom-glacê, tâmaras, além toques medicinais e balsâmicos. Pleno de camadas e nuances, que dão vontade de guardar a taça sem lavar por vários dias. Como o próprio nome faz menção, inesquecível. EM
AD 96 pontos
CHRYSEIA 2011
Prats & Symington, Douro, Portugal. Nesta safra, este tinto foi elaborado a partir de 65% Touriga Nacional e 35% Touriga Franca, com estágio de 15 meses em barris novos de 400 litros de carvalho francês. Nariz elegante e delicado, cheio de notas florais, herbáceas e de tabaco, além de toques especiados, terrosos e de alcaçuz. No palato, tem um estilo potente, estruturado, com fruta madura, mas muito bem balanceado por taninos de ótima textura, acidez vibrante e final longo, persistente e suculento. Consegue ser opulento, fino e profundo ao mesmo tempo. Um bebê ainda, com muita vida pela frente e, com certeza, a melhor safra já elaborada deste tinto, o que só comprova que 2011 no Douro foi uma grande safra em todos os sentidos. Álcool 14%. EM
AD 94 pontos
GRAHAM’S VINTAGE PORT 1997
Graham’s, Douro, Portugal. Sem dúvida, uma das melhores safras da década de 1990, juntamente com 1991 e 1994, este Vintage 1997 está quase um adolescente, muito longe ainda de sua maturidade. Agora está muito gostoso de beber, mostrando-se repleto de aromas de frutas vermelhas e negras frescas, com notas florais, herbáceas, de tabaco e de especiarias doces. No palato, confirma sua juventude, mas os taninos estão bem macios, chamando a atenção pela harmonia do conjunto, entre acidez e a fruta doce. Longo, muito longo, cheio de camadas e texturas. Uma delícia. Para ser tomado sozinho, como um vinho de meditação. Álcool 20%. EM